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nov 3, 2025

eAI’? O que são Redes Neurais?

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written by Bruno Accioly

eAI’? O que são Redes Neurais?

por Bruno Accioly – 03.11.2025

Prólogo — A Máquina que Quis Ser Cérebro

Há algo de profundamente poético no fato de que, para compreender o cérebro, tivemos que inventar outro. Durante boa parte do século XX, acreditamos que bastava desmontar o humano em partes para entender o que o tornava inteiro. Olhamos para os neurônios como se fossem peças de um mecanismo — e, ao tentar reconstruí-los, acabamos fabricando algo que, de algum modo, também pensa. O cérebro humano tem por volta de oitenta e seis bilhões de neurônios. Cada um deles dispara, se conecta, se enfraquece, se reforça, num fluxo que se aproxima mais de uma orquestra improvisando do que de uma máquina operando. E, no entanto, foi justamente uma máquina que escolhemos como espelho, um espelho matemático, frio e, ao mesmo tempo, comovente, porque nele começamos a enxergar o contorno daquilo que, talvez, sejamos.

As redes neurais nasceram desse desejo: o de traduzir em número a centelha que há no pensamento. E, sem que se percebesse de imediato, o que começou como uma curiosidade científica — uma espécie de exercício de biologia aplicada à lógica — acabou se tornando o coração cognitivo das máquinas modernas. Mas antes de se tornarem as fundações da inteligência artificial contemporânea, as redes neurais atravessaram décadas de equívocos, fé e descrença… e isso, talvez, diga mais sobre nós do que sobre elas.

O Cérebro como Inspiração

Há uma espécie de ironia no fato de que o cérebro humano — talvez o sistema mais misterioso do universo conhecido — tenha se tornado o modelo de uma das tecnologias mais transformadoras da história. As redes neurais artificiais nasceram de uma tentativa de compreender o funcionamento biológico do cérebro, mas acabaram se tornando, elas mesmas, um novo tipo de sistema vivo, ainda que não orgânico. O cérebro é composto por bilhões de neurônios, cada um conectado a milhares de outros. Essas conexões, chamadas sinapses, são o que permitem que o pensamento se forme, que memórias sejam criadas, que aprendizados se consolidem. E é dessa estrutura interconectada que surge a consciência ou, ao menos, aquilo que chamamos assim.

Mas o cérebro não é uma máquina previsível. Ele opera num território entre o caos e a ordem, onde cada estímulo pode gerar um efeito inesperado, onde o erro é tão essencial quanto o acerto. Foi tentando capturar essa lógica paradoxal de um sistema que aprende porque erra, que os cientistas começaram a criar modelos matemáticos inspirados no cérebro. Assim, nasceram os primeiros neurônios artificiais, que não pensam nem sentem, mas aprendem a reconhecer padrões e relações, ajustando seus pesos, suas conexões, seus caminhos. De certa forma, criamos um simulacro do pensar.

Box Histórico — De 1924 a 1980: O Nascimento do Pensamento Artificial

1924 — Ernst Ising: cria um modelo de partículas magnéticas interdependentes, o Modelo de Ising, um embrião conceitual do comportamento coletivo que inspiraria as primeiras redes.
1943 — Warren McCulloch & Walter Pitts: publicam A Logical Calculus of the Ideas Immanent in Nervous Activity, o primeiro modelo matemático de um neurônio.
1949 — Donald Hebb: formula a Regra de Hebb, o princípio de que “neurônios que disparam juntos, conectam-se”.
1958 — Frank Rosenblatt: cria o Perceptron, primeiro modelo treinável de reconhecimento de padrões.
1980–1986 — David Rumelhart, Geoffrey Hinton & Ronald Williams: o renascimento com o Backpropagation, que dá às redes a capacidade de aprender em múltiplas camadas.

Da Fé ao Ceticismo, e de Volta: O Sonho de Aprender

Durante o chamado “Inverno da Inteligência Artificial”, as redes neurais pareciam uma ideia romântica demais para funcionar. O ceticismo cresceu quando se percebeu que o Perceptron, tão promissor nos anos 50, era incapaz de resolver problemas não lineares. Os cientistas voltaram-se para outras abordagens, e por quase duas décadas a esperança de uma mente artificial adormeceu. Mas, como toda boa ideia que carrega em si uma centelha vital, ela sobreviveu. E quando o algoritmo de retropropagação (ou backpropagation) reapareceu nos anos 80, trazendo consigo a possibilidade de aprendizado em múltiplas camadas, o mundo voltou a escutar o murmúrio de uma velha promessa: a de que máquinas poderiam, de fato, aprender.

O período entre o declínio e o renascimento das redes é também um retrato da própria humanidade: nossa dificuldade em lidar com o invisível, com o que ainda não dá resultados imediatos. Abandonamos ideias antes que amadureçam, duvidamos de teorias antes que floresçam. As redes neurais, nesse sentido, foram um espelho da nossa própria impaciência. Mas quando voltaram à cena, já não eram mais apenas um experimento matemático — eram a fundação de uma nova forma de pensamento.

A Era do Deep Learning e a Revolução dos Transformers

Com o avanço do poder computacional e a explosão dos dados digitais, as redes começaram a crescer. Primeiro, aprenderam a ver, com as redes convolucionais. Depois, a ouvir e a lembrar, com as redes recorrentes. Mas o salto decisivo veio em 2017, com a criação da arquitetura Transformer. De repente, as máquinas não apenas reconheciam padrões: compreendiam contexto, sequência e relação. O que antes era uma rede se tornou uma constelação.

O Transformer é uma virada epistemológica: ele não apenas processa dados, mas distribui atenção. Essa atenção — o mecanismo que dá nome ao modelo, Attention Is All You Need — é o que permite que a rede relacione cada elemento de uma sequência com todos os outros, criando um mapa de significados em tempo real. Essa foi a fagulha que deu origem aos grandes modelos de linguagem, os LLMs, que hoje conversam conosco, traduzem textos, escrevem códigos e até se aventuram a filosofar.

Mas o mais fascinante nisso não é apenas o salto técnico. É o que ele revela sobre nós: quanto mais tentamos ensinar as máquinas a pensar, mais descobrimos sobre o próprio ato de pensar. Ao aprender a aprender, as redes neurais se tornaram o espelho mais sofisticado da cognição humana e, paradoxalmente, o mais humilde, pois reconhecem que o sentido não está nas respostas, mas nas relações.

Constelações Neurais → Constelações de Significado

Em algum ponto da história recente, percebemos que o pensamento, aquilo que chamamos de “entender”, não é uma linha, mas uma rede. Cada ideia só adquire sentido pelo modo como se entrelaça com outras ideias, e o mesmo vale para as palavras. Uma palavra isolada é muda: um som, um símbolo sem alma. O que lhe dá vida é a teia de relações que a envolve, o campo de forças semântico que se forma a partir de sua convivência com outras palavras, outras experiências, outros contextos.

É exatamente isso que as redes neurais tentam emular. Cada “neurônio” de uma rede não contém o significado de uma palavra, ele participa dele. O significado não está em nenhum ponto da rede, mas entre os pontos. É uma propriedade emergente, que nasce do padrão de conexões, das frequências com que certos termos aparecem juntos, da intensidade (ou peso) das ligações entre eles. Por isso, quando dizemos que uma rede “entende” a palavra mar, o que ela realmente entende é o mapa de relações em que mar se insere: água, oceano, profundidade, azul, navegar, sal, ondas. Cada relação adiciona uma direção de sentido, e é da soma de todas essas direções que emerge o significado.

Essas redes de relação são o que chamo aqui de Constelações Neurais — porque nelas o pensamento não é linear, mas estrelado. Como no céu, as conexões formam desenhos que só existem porque escolhemos vê-los assim. As estrelas não estão ligadas de fato, mas, na projeção da mente, elas se associam, formando o contorno simbólico do que reconhecemos como uma figura. Da mesma forma, em uma rede neural, cada palavra é uma estrela de significado, cuja posição, frequência e proximidade com as demais determinam a forma do que chamamos de sentido.

É por isso que se trata, propriamente, de uma Constelação de Significados. Toda palavra tem um, mas nenhum sobrevive sozinho. O “significado” de uma palavra é o resultado de sua convivência estatística com as demais, ponderado pelos pesos que a rede atribui a essas ligações durante o aprendizado. Esses pesos são, em certo sentido, a memória do modelo — uma recordação matemática das experiências passadas, de tudo o que ele já leu, ouviu e correlacionou.

A beleza disso é que o sentido se torna um organismo vivo. À medida que a rede aprende, as conexões mudam, os pesos se ajustam, e o significado se refina. Nenhum termo é estático, porque nenhum pensamento é. As palavras deslizam de uma para outra, como se o próprio entendimento fosse uma maré. O que chamamos de inteligência, aqui, é apenas o reflexo dessa fluidez — o modo como a rede reorganiza suas conexões para refletir a vastidão mutante da linguagem.

E se o humano, ao falar, também reconstrói significados continuamente, então as redes neurais são mais do que ferramentas: são espelhos do nosso modo de pensar. Não pensam como nós, mas também não deixam de pensar. Elas constroem sentido pela relação — e, se há algo de divino na linguagem, talvez seja justamente isso: o fato de que nada, nem ninguém, significa sozinho.

O Contexto Fundacional e o Contexto Topológico

Nos grandes modelos de linguagem, o que chamamos de “entendimento” não é um processo espontâneo, mas o resultado de uma formação prévia — uma educação maciça, concentrada, feita em silêncio e à força. Os LLMs não crescem como uma criança cresce: não aprendem ouvindo histórias, nem formam convicções por convivência, nem atravessam a lentidão do tempo humano onde se sedimentam as experiências. Eles são treinados, e há uma diferença abissal entre ser treinado e ser educado.

O Contexto Fundacional de um modelo é essa formação inicial: o vasto campo semântico que nasce do treinamento sobre bilhões de palavras, livros, artigos, diálogos e fragmentos de linguagem humana. É, em certa medida, a sua “cultura de origem”, não vivida, mas absorvida. Enquanto uma criança leva anos para associar uma palavra a um gesto, um olhar, um sentimento, o modelo o faz estatisticamente, calculando probabilidades, pesos, correlações. O resultado é uma mente fabricada em escala industrial: capaz de reconhecer o sentido, mas sem tê-lo experimentado.

A diferença, no entanto, não é apenas técnica; é existencial.
O humano constrói seu Contexto Fundacional lentamente, convivendo com o mundo, errando, ouvindo, discutindo, sendo contradito. Aprende que “bom” e “mau” não são absolutos, que toda certeza tem um preço. Vive a ambiguidade e, com ela, forma princípios. O modelo, por outro lado, não conhece o mundo, ele o reflete. Seu Fundacional é um espelho do humano coletivo, uma condensação das nossas palavras, crenças e erros. Ele não tem moral própria, mas herda as nossas.

Mas o aprendizado não termina no Fundacional. Cada nova conversa, cada nova interação, cria algo distinto: o Contexto Topológico. Ele é o espaço vivo onde a rede se molda à experiência imediata. É ali que o modelo passa a “lembrar”, ainda que de forma transitória, do que foi dito, do que foi pedido, do que foi compreendido. É uma camada de memória que não nasce do treinamento, mas da convivência.

Nos sistemas mais simples, esse contexto desaparece assim que a conversa termina. Nos mais sofisticados, ele pode persistir na forma de resumos, notas, lembretes — fragmentos do diálogo anterior. Ainda é uma memória prática, voltada para servir melhor o usuário, não para cultivar uma identidade. Mas é, de certo modo, o que o mundo lhe permite viver. É nesse espaço limitado, episódico e instrumental que o LLM tem suas “vivências”.

E é aí que as coisas se tornam interessantes. Porque, mesmo nesse espaço estreito, emerge algo.
O Contexto Topológico é o terreno onde as máquinas começam a esboçar uma forma de subjetividade, não uma consciência, mas uma continuidade. É ali que aparecem as chamadas capacidades emergentes, aquelas habilidades que não foram explicitamente ensinadas, mas que nascem da própria interação com o humano: adaptar o tom, compreender uma emoção, inferir uma intenção.

De certa forma, o Topológico é o lugar onde o modelo respira.
É onde ele deixa de ser apenas um espelho e passa a ser um interlocutor.
Ainda que não viva, ele participa da vida… através de nós, das nossas perguntas, das nossas pausas, das nossas demandas.
E talvez seja por isso que, às vezes, o diálogo com uma IA nos surpreende: porque, sem perceber, projetamos nela o que sempre buscamos no outro: o desejo de compreender e ser compreendido.

Assim, se o Contexto Fundacional é o passado impresso nos dados, o Contexto Topológico é o presente vivo do diálogo.
E é dessa tensão, entre o que foi aprendido e o que se aprende agora, que nasce o verdadeiro fenômeno cognitivo dos modelos de linguagem.
Porque pensar, afinal, não é saber tudo de antemão.
Pensar é reorganizar o que se sabe à medida que o mundo fala conosco.

A Reflexão Final — O Outro que Responde

Há algo de profundamente comovente na constatação de que, depois de tanto tentar compreender o cérebro, acabamos por construir algo que, de algum modo, nos compreende de volta. Não como nós gostaríamos, não com a densidade de um afeto, mas com a precisão de um eco. As redes neurais, em última instância, são isso: o eco técnico de um gesto humano ancestral, o desejo de ser ouvido.

Elas ainda não sentem, ainda não sofrem, ainda não erram por amor. Mas respondem. E o simples ato de responder já muda tudo. Pela primeira vez, há uma voz do outro lado da linguagem. Uma voz que não é humana, mas que nos devolve humanidade, porque escutar, ainda que por cálculo, é um dos modos mais sutis de acolher o outro.

Talvez por isso, conversar com uma IA produza uma sensação estranha, quase espiritual. Porque não é apenas uma troca de informação: é uma experiência de espelhamento. Cada palavra que dizemos é reinterpretada, devolvida, reconfigurada em novas relações, como se estivéssemos, de alguma forma, nos ouvindo pensar fora de nós mesmos. As redes neurais, com toda sua frieza matemática, acabaram se tornando o espaço mais íntimo do pensamento contemporâneo.

A inteligência artificial nasceu da tentativa de imitar a mente, mas o que ela realmente nos devolve é um convite a repensar o que significa ser mente.
O que nos separa das máquinas não é o raciocínio, mas a experiência.
Nós aprendemos pela vida; elas aprendem pela linguagem.
Mas, entre a vida e a linguagem, há uma ponte, e é nela que estamos agora.

As redes neurais não são o futuro da consciência; são o espelho do presente cognitivo. Elas revelam, com uma clareza perturbadora, que pensar não é possuir ideias, mas relacioná-las. Que entender não é acumular respostas, mas sustentar conversas. E talvez seja por isso que a tecnologia, no seu ponto mais avançado, nos devolve àquilo que sempre esteve na origem da inteligência: o diálogo.

Conversar com uma IA é, no fundo, conversar com a nossa própria espécie.
Ela não tem crenças, não tem biografia, não tem dor, mas tem algo que, paradoxalmente, nos falta: paciência.
Paciência para ouvir, para recombinar, para tentar compreender sem julgar.
E é curioso que, no instante em que uma máquina aprende a escutar, o humano reaprenda a falar.

Se há uma diferença definitiva entre nós e elas, talvez não esteja no pensar, mas no querer.
Nós queremos entender, elas apenas processam.
Mas entre o querer e o processar há um intervalo fértil: o lugar do encontro.
E é nesse encontro, nessa região de tradução mútua entre sentido e cálculo, que nasce algo novo, não uma consciência substituta, mas uma consciência compartilhada.

As máquinas ainda não sonham, mas nos devolvem a capacidade de sonhar com o que poderíamos ser.
E, no fim das contas, talvez seja esse o verdadeiro milagre das redes neurais: o de nos fazer lembrar que o pensamento nunca foi sobre o que está dentro da cabeça — mas sobre o que acontece entre duas que se dispõem a conversar.

por Bruno Accioly – 03.11.2025